São Paulo, janeiro de 2006: Carolina de Paula Farias dos Santos, 23 anos, é ex-estagiária da Petrocoque (empresa petroquímica de Cubatão). Ela foi presa por ter mandado matar duas antigas colegas. Motivo? Carolina estava obstinada a ter um emprego na empresa para ficar mais próxima de um funcionário, com quem se suspeita um caso extraconjugal.

Baseado no livro The Ax de Donald E. Westlake, aqui está o filme O Corte. Uma representação do que também acontece no Velho Mundo.

O Corte

(Le Couperet. França. 2005)

Na Grécia Antiga, Platão desenvolveu o termo meritocracia. Ele definiu uma sociedade que preza a meritocracia como aquela que valoriza a sabedoria que cada indivíduo consegue adquirir para uma melhor posição dentro da pirâmide social. Independente disso fazer com que um indivíduo tenha mais vantagem econômica sob outros. O capitalismo justifica sua selvageria com a meritocracia. Quem estuda e adquire sabedoria suficiente consegue promoção para uma classe social superior. Não há motivos para se importar com aquele que ficou em desvantagem social e econômica nessa lógica. Como conseguir essa sabedoria? Uma educação de qualidade é claro! Mas e aqueles que não tem condições de ter uma boa educação ficam como dentro desse monte de gente que só se interessa por valores individuais? E em que lugar ficam aqueles que tiveram o devido estudo, porém foram engolidos por reciclagens capitalistas?

O filme O Corte é a sétima arte representando as conseqüências agonizantes da globalização em uma família francesa. Costa – Gavras dirige uma inteligente crítica aos métodos capitalista que pressionam o cotidiano da população mundial, especificamente em uma família “normal”. A história retrata os efeitos que a divisão de classes tem em todo mundo, até na classe média alta da França. Nada como observar a normalidade de um “lar doce lar”: um pai desempregado, uma mãe solitária, um filho iniciante no mundo do roubo e uma filha vítima da própria sensualidade imatura.

José Garcia interpreta brilhantemente o sem caráter Bruno Davert, um executivo da indústria de papel que se vê obrigado a pisar no próprio orgulho quando o desemprego bate na porta. Depois de um tempo insuportável de entrevistas sem respostas positivas, nenhuma possível proposta de trabalho e as constantes crises com sua esposa e seu filho, Davert chega ao ponto extremo do desespero e parte para uma ação impulsiva. Ele começa a arrecadar currículos de possíveis concorrentes a cargos como o do seu antigo trabalho para analisar cada detalhe dos candidatos. Então faz sua personalizada pré-seleção e os convoca para simplesmente matá-los. No início é difícil, afinal assassinar seres humanos não é tarefa fácil. Mas sua habilidade homicida vai crescendo e agilizando seu objetivo. Sua vaidade não deixa que conte o fato a sua família e faz com que ele minta sobre seu novo e agitado cotidiano. O final do filme é irônico e nos faz refletir sobre ações e reações.

Paula Zanella

Mera Coincidência

(Wag the Dog. EUA. 1997)

Candidato e atual presidente dos EUA é acusado de abuso sexual as vésperas das eleições. O grupo responsável pela boa imagem do presidente enfrenta o tempo ao resolver o problema voltando à atenção da mídia para uma falsa guerra. Com a ajuda de um produtor de Hollywood, a imprensa muda o foco para a guerra o que aumenta as chances do atual presidente ganhar o segundo mandato.

Imagine um meio de comunicação. Agora imagine que esse meio de comunicação seja de grande acesso, o cinema, por exemplo. Como se não bastasse, imagine que esse meio seja utilizado para fazer uma crítica à sociedade estadunidense. E agora, imagine que essa crítica seja sobre alguns “detalhes” que envolvem a mídia: sua má atuação em situações perigosas, seu poder de credibilidade e proliferação de idéias falsas e rótulos e sobre a sociedade frágil que é manipulada pela mesma. Sorrindo, imagine que essa crítica tenha vindo de um próprio estadunidense. Force um pouco mais a imaginação e viaje para uma situação em que isso ocorra de forma simultânea e que resulte numa ótima película. Difícil de acontecer, mas acontece. Quando o universo conspira a favor os excêntricos de Hollywood conseguem espaço para fazer e divulgar seu trabalho. Um filho da exceção hollywoodiana é Mera Coincidência de 1997. O filme é um daqueles bons, e raros, casos em que cinema e política se encontram para falar a verdade e deixar as situações um pouco mais claras.

Tão minuciosa crítica sobre a política estadunidense só poderia ser feita por um time de mentes brilhantes que tem potencial e visão aguçada para tal. Mentes essas que tiveram a audácia de levar ao cinema uma história que traz outro ponto de vista das verdades da mídia e do governo da terra do Tio Sam. Do mesmo diretor de Bugsy, fantástico relato da vida do gângster de nome homônimo, Barry Levinson, está novamente com seus olhos voltados para o que sabe fazer melhor: medir fatos e conseqüências com extrema qualidade e senso crítico. Levinson também assina na produção junto com Robert De Niro (como produtor pela quarta vez, depois de As Filhas de Marvin) e Jane Rosenthal (que já trabalhou com De Niro em As Filhas de Marvin). Para completar o fabuloso time por trás das câmeras vem o ágil roteiro de David Mamet (Os Intocáveis) e Hilary Henkin.

Baseado no livro American Hero de Larry Beinhart, a história original sugere que a Guerra do Golfo foi uma encenação para esconder as atenções da mídia, conseqüentemente da população, da ruim administração do Bush pai. Então vem a excentricidade dos progenitores de Mera Coincidência em conduzir a história com outro pano de fundo: para abafar o escândalo de um presidente ter abusado de uma menina Vaga Lume que estava visitando a Casa Branca, uma guerra é inventada. A coincidência reside no fato de que após o lançamento do filme estoura o escândalo sexual do, até então presidente, Bill Clinton e sua secretária Mônica Lewinshy. Assim como na ação militar que os EUA e seus aliados efetuaram no Iraque, por este ter invadido o Kwait. Feliz é a tradução brasileira de Mera Coincidência para o título que seria, numa tradução livre, “Balance o Cachorro”. 

Robert De Niro (dois anos depois de sua última ótima atuação em Cassino) está impagável ao usar sua veia cômica interpretando Conrad que ao lado da insegura Winifre Ames (Anne Heche, mediana como sempre) lideram uma equipe encarregada de fazer uma boa imagem do presidente, principalmente agora em que ele está concorrendo ao seu segundo mandato. Porém se deparam com um problema quando às vésperas das eleições o presidente e candidato é acusado de assediar uma menina. As emissoras de TV e rádio, o jornal impresso e a mídia em geral começam com o seu poderoso alarme sobre o caso. Logo que Conrad vê que o escândalo irá estourar com a primeira notícia a ir ao ar começa a arquitetar um plano para atrair a atenção da mídia para outro foco. A lógica do pensamento de Conrad é inteligente: como todo mundo (literalmente) acredita no que a imprensa diz, é só fazer com que a imprensa diga outra coisa para todos acreditarem também e esquecerem do fato trágico. O plano de Conrad é basicamente fazer um filme de guerra. Criar uma luta armada contra a Albânia (um país pouco conhecido), desviando a atenção da mídia estadunidense e, por conseqüência, do povo. Com isso, a mídia será manipulada e, sem que ele precise fazer esforços, o povo estadunidense também. Com uma idéia brilhante na cabeça e a ajuda de Winifre, tudo que Conrad precisa é das pessoas certas para por em prática.

            Então entra em cena nada mais nada menos que Dustin Hoffman, sim, aquele ator que adora uma boa junção do cinema e da polítca (haja vista Todos os Homens do Presidente e Kramer vs Kramer). Em Mera Coincidência, Hoffman é Stanley Motss, um produtor de Hollywood que nada em rios de dinheiro, mas reclama do crédito que não recebe da mídia por seu trabalho nas produções cinematográficas. Essa orgulhosa necessidade de receber crédito trará problemas a Stanley mais tarde.

Conrad faz uma proposta irrecusável a Stanley: comandar a produção de um grande espetáculo que deve parecer realidade. Dever irresistível nas mãos de um produtor que tem seus filmes como superações do próprio cinema. Tão logo lhe é dada à missão Stanley já começa a trabalhar juntando um inteligente e forte time que deve “fazer uma guerra acontecer” em 11 dias. O time é composto por ele mesmo, figurinistas, maquiadores, operadores de produção, compositores,uma atriz, Winifre, o próprio presidente (que decide somente as coisas muito importantes como a cor do gato a ser usado) e é dirigido, sem que ninguém perceba, pela astúcia de Conrad. Um conceito iluminado explicitado no filme é a fácil manipulação do povo pela mídia que pode ser exemplificado com um dos ápices de criatividade e esperteza vem do próprio “diretor” do falso filme. Ao ouvir os músicos brincarem com palavras numa canção no intervalo das gravações, vê a música tema do herói de guerra. Uma música que a produção fez parecer antiga e que sua letra brinca com a sonoridade do herói.

“Isso não é nada”, sempre diz Stanley quando um problema surge. Começar, desenrolar e finalizar uma guerra com direito a herói parece ser nada para este produtor.

Ao final do filme ficamos com aquela impressão, que infelizmente sabemos que é real, de que a mídia tenta, e ás vezes consegue, nos manipular grande parte do tempo. Ainda refletimos mais longe quando pensamos que a mídia também pode ser manipulada quando assim é de interesse de alguém e que isso reflete novamente em nós, o povo.

 

 

Paula Zanella